UNESP - 2018/2 - 1ª fase - Leia o conto “A moça rica”, de Rubem Braga (1913-1990), para responder às questões de 02 a 06 . A madrugada er...
UNESP - 2018/2 - 1ª fase - Leia o conto “A moça rica”, de Rubem Braga (1913-1990), para responder às questões de 02 a 06.
A madrugada era escura nas moitas de mangue, e eu avançava no batelão¹ velho; remava cansado, com um resto de sono. De longe veio um rincho² de cavalo; depois, numa choça de pescador, junto do morro, tremulou a luz de uma lamparina.
Aquele rincho de cavalo me fez lembrar a moça que eu encontrara galopando na praia. Ela era corada, forte. Viera do Rio, sabíamos que era muito rica, filha de um irmão de um homem de nossa terra. A princípio a olhei com espanto, quase desgosto: ela usava calças compridas, fazia caçadas, dava tiros, saía de barco com os pescadores. Mas na segunda noite, quando nos juntamos todos na casa de Joaquim Pescador, ela cantou; tinha bebido cachaça, como todos nós, e cantou primeiro uma coisa em inglês, depois o Luar do sertão e uma canção antiga que dizia assim: “Esse alguém que logo encanta deve ser alguma santa”. Era uma canção triste.
Cantando, ela parou de me assustar; cantando, ela deixou que eu a adorasse com essa adoração súbita, mas tímida, esse fervor confuso da adolescência – adoração sem esperança, ela devia ter dois anos mais do que eu. E amaria o rapaz de suéter e sapato de basquete, que costuma ir ao Rio, ou (murmurava-se) o homem casado, que já tinha ido até à Europa e tinha um automóvel e uma coleção de espingardas magníficas. Não a mim, com minha pobre flaubert³, não a mim, de calça e camisa, descalço, não a mim, que não sabia lidar nem com um motor de popa, apenas tocar um batelão com meu remo.
Duas semanas depois que ela chegou é que a encontrei na praia solitária; eu vinha a pé, ela veio galopando a cavalo; vi-a de longe, meu coração bateu adivinhando quem poderia estar galopando sozinha a cavalo, ao longo da praia, na manhã fria. Pensei que ela fosse passar me dando apenas um adeus, esse “bom-dia” que no interior a gente dá a quem encontra; mas parou, o animal resfolegando e ela respirando forte, com os seios agitados dentro da blusa fina, branca. São as duas imagens que se gravaram na minha memória, desse encontro: a pele escura e suada do cavalo e a seda branca da blusa; aquela dupla respiração animal no ar fino da manhã.
E saltou, me chamando pelo nome, conversou comigo. Séria, como se eu fosse um rapaz mais velho do que ela, um homem como os de sua roda, com calças de “palm-beach”, relógio de pulso. Perguntou coisas sobre peixes; fiquei com vergonha de não saber quase nada, não sabia os nomes dos peixes que ela dizia, deviam ser peixes de outros lugares mais importantes, com certeza mais bonitos. Perguntou se a gente comia aqueles cocos dos coqueirinhos junto da praia – e falou de minha irmã, que conhecera, quis saber se era verdade que eu nadara desde a ponta do Boi até perto da lagoa.
De repente me fulminou: “Por que você não gosta de mim? Você me trata sempre de um modo esquisito...” Respondi, estúpido, com a voz rouca: “Eu não”.
Ela então riu, disse que eu confessara que não gostava mesmo dela, e eu disse: “Não é isso.” Montou o cavalo, perguntou se eu não queria ir na garupa. Inventei que precisava passar na casa dos Lisboa. Não insistiu, me deu um adeus muito alegre; no dia seguinte foi-se embora.
Agora eu estava ali remando no batelão, para ir no Severone apanhar uns camarões vivos para isca; e o relincho distante de um cavalo me fez lembrar a moça bonita e rica. Eu disse comigo – rema, bobalhão! – e fui remando com força, sem ligar para os respingos de água fria, cada vez com mais força, como se isto adiantasse alguma coisa.
1 batelão: embarcação movida a remo.
2 rincho: relincho.
3 flaubert: um tipo de espingarda.
A madrugada era escura nas moitas de mangue, e eu avançava no batelão¹ velho; remava cansado, com um resto de sono. De longe veio um rincho² de cavalo; depois, numa choça de pescador, junto do morro, tremulou a luz de uma lamparina.
Aquele rincho de cavalo me fez lembrar a moça que eu encontrara galopando na praia. Ela era corada, forte. Viera do Rio, sabíamos que era muito rica, filha de um irmão de um homem de nossa terra. A princípio a olhei com espanto, quase desgosto: ela usava calças compridas, fazia caçadas, dava tiros, saía de barco com os pescadores. Mas na segunda noite, quando nos juntamos todos na casa de Joaquim Pescador, ela cantou; tinha bebido cachaça, como todos nós, e cantou primeiro uma coisa em inglês, depois o Luar do sertão e uma canção antiga que dizia assim: “Esse alguém que logo encanta deve ser alguma santa”. Era uma canção triste.
Cantando, ela parou de me assustar; cantando, ela deixou que eu a adorasse com essa adoração súbita, mas tímida, esse fervor confuso da adolescência – adoração sem esperança, ela devia ter dois anos mais do que eu. E amaria o rapaz de suéter e sapato de basquete, que costuma ir ao Rio, ou (murmurava-se) o homem casado, que já tinha ido até à Europa e tinha um automóvel e uma coleção de espingardas magníficas. Não a mim, com minha pobre flaubert³, não a mim, de calça e camisa, descalço, não a mim, que não sabia lidar nem com um motor de popa, apenas tocar um batelão com meu remo.
Duas semanas depois que ela chegou é que a encontrei na praia solitária; eu vinha a pé, ela veio galopando a cavalo; vi-a de longe, meu coração bateu adivinhando quem poderia estar galopando sozinha a cavalo, ao longo da praia, na manhã fria. Pensei que ela fosse passar me dando apenas um adeus, esse “bom-dia” que no interior a gente dá a quem encontra; mas parou, o animal resfolegando e ela respirando forte, com os seios agitados dentro da blusa fina, branca. São as duas imagens que se gravaram na minha memória, desse encontro: a pele escura e suada do cavalo e a seda branca da blusa; aquela dupla respiração animal no ar fino da manhã.
E saltou, me chamando pelo nome, conversou comigo. Séria, como se eu fosse um rapaz mais velho do que ela, um homem como os de sua roda, com calças de “palm-beach”, relógio de pulso. Perguntou coisas sobre peixes; fiquei com vergonha de não saber quase nada, não sabia os nomes dos peixes que ela dizia, deviam ser peixes de outros lugares mais importantes, com certeza mais bonitos. Perguntou se a gente comia aqueles cocos dos coqueirinhos junto da praia – e falou de minha irmã, que conhecera, quis saber se era verdade que eu nadara desde a ponta do Boi até perto da lagoa.
De repente me fulminou: “Por que você não gosta de mim? Você me trata sempre de um modo esquisito...” Respondi, estúpido, com a voz rouca: “Eu não”.
Ela então riu, disse que eu confessara que não gostava mesmo dela, e eu disse: “Não é isso.” Montou o cavalo, perguntou se eu não queria ir na garupa. Inventei que precisava passar na casa dos Lisboa. Não insistiu, me deu um adeus muito alegre; no dia seguinte foi-se embora.
Agora eu estava ali remando no batelão, para ir no Severone apanhar uns camarões vivos para isca; e o relincho distante de um cavalo me fez lembrar a moça bonita e rica. Eu disse comigo – rema, bobalhão! – e fui remando com força, sem ligar para os respingos de água fria, cada vez com mais força, como se isto adiantasse alguma coisa.
(Os melhores contos, 1997.)
1 batelão: embarcação movida a remo.
2 rincho: relincho.
3 flaubert: um tipo de espingarda.
QUESTÃO 02
O espanto inicial demonstrado pelo narrador em relação à moça deve-se ao fato de ela
(A) portar-se de forma independente.
(B) agir de modo dissimulado.
(C) cantar muito bem.
(D) demonstrar orgulho de sua cidade natal.
(E) ser bastante rica.
Resolução:
O conto narra o comportamento de uma moça que encantou o rapaz simples, porque ela sabia atirar, pescava junto dos outros pescadores e cavalgava sozinha, ou seja, era uma mulher independente.
Resposta:
(A) portar-se de forma independente.
QUESTÃO 03
A fala “rema, bobalhão!” (último parágrafo) sugere, por parte do narrador,
(A) intransigência.
(B) impaciência.
(C) atrevimento.
(D) simplicidade.
(E) arrependimento.
Resolução:
O monólogo do narrador personagem é uma crítica a si mesmo por não ter conseguido travar um diálogo inteligente com a moça rica e independente.
Resposta:
(E) arrependimento.
QUESTÃO 04
O pleonasmo (do grego pleonasmós, que quer dizer abundância, excesso, amplificação) é uma repetição de unidades linguísticas idênticas do ponto de vista semântico, o que implica que a repetição é tautológica (redundante). No entanto, ela é uma extensão do enunciado com vistas a intensificar o sentido.
(José Luiz Fiorin. Figuras de retórica, 2014. Adaptado.)
Verifica-se a ocorrência de pleonasmo em:
(A) “fiquei com vergonha de não saber quase nada, não sabia os nomes dos peixes que ela dizia” (5º parágrafo).
(B) “eu avançava no batelão velho; remava cansado, com um resto de sono” (1º parágrafo).
(C) “ela deixou que eu a adorasse com essa adoração súbita, mas tímida” (3º parágrafo).
(D) “A princípio a olhei com espanto, quase desgosto” (2º parágrafo).
(E) “Pensei que ela fosse passar me dando apenas um adeus” (4º parágrafo).
Resolução:
Ocorre pleonasmo, pois uma mesma ideia se repete em “adorasse” e “adoração”.
Resposta:
(C) “ela deixou que eu a adorasse com essa adoração súbita, mas tímida” (3º parágrafo).
QUESTÃO 05
Ao se converter o trecho “Ela então riu, disse que eu confessara que não gostava mesmo dela” (7º parágrafo) para o discurso direto, o verbo “confessara” assume a forma:
(A) confessei.
(B) confessou.
(C) confessa.
(D) confesso.
(E) confessava.
Resolução:
A forma verbal “confessara”, no pretérito mais-queperfeito do modo indicativo, está em discurso indireto. Transpondo-o para discurso direto, tem-se: “você confessou (pretérito perfeito) que não gosta mesmo de mim”.
Resposta:
(B) confessou.
QUESTÃO 06
“Duas semanas depois que ela chegou é que a encontrei na praia solitária; eu viajava a pé, ela veio galopando a cavalo” (4º parágrafo)
Os termos sublinhados constituem, respectivamente,
(A) artigo, preposição, artigo.
(B) artigo, preposição, preposição.
(C) pronome, artigo, artigo.
(D) pronome, preposição, preposição.
(E) pronome, artigo, preposição.
Questão anterior:
- Examine a tira do cartunista André Dahmer.
Resolução (Objetivo):
Em “a encontrei”, o termo “a” funciona morfologicamente como pronome oblíquo, uma vez que retoma o pronome reto “ela” da oração anterior. Em “a pé” e “a cavalo”, o termo “a” funciona como preposição, já que faz parte de expressões adverbiais.
Resposta:
(D) pronome, preposição, preposição.
Próxima questão:
- Leia o soneto “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia”, do poeta Gregório de Matos (1636-1696), para responder às questões de 07 a 12.
Questão anterior:
- Examine a tira do cartunista André Dahmer.
Resolução (Objetivo):
Em “a encontrei”, o termo “a” funciona morfologicamente como pronome oblíquo, uma vez que retoma o pronome reto “ela” da oração anterior. Em “a pé” e “a cavalo”, o termo “a” funciona como preposição, já que faz parte de expressões adverbiais.
Resposta:
(D) pronome, preposição, preposição.
Próxima questão:
- Leia o soneto “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia”, do poeta Gregório de Matos (1636-1696), para responder às questões de 07 a 12.
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