Leia o texto. Se necessário, consulte a nota. Eram terríveis as rotinas, quase um rito iniciático, uma sagração. Havia o dia de esfregar a...
Leia o texto. Se necessário, consulte a nota.
Eram terríveis as rotinas, quase um rito iniciático, uma sagração. Havia o dia de esfregar a casa, o dia de lavar a roupa, o dia de arear os metais, o dia de tomar banho. E também o dia de pôr flores aos mortos. Havia ainda o dia do remédio para as bichas e o dia do pente fino, à cata dos piolhos apanhados na escola.
Nada mais contava senão o que estava determinado para ser o dia desse dia. As mulheres ficavam possessas de cada tarefa, como tangidas¹ por uma demoníaca alucinação. Era uma coisa obscura, essencial, que desordenava e reordenava a casa, as horas, os hábitos, os próprios humores. Ninguém podia quebrar aquele ritmo, que girava, obsessivo, à volta da mãe. Os homens estavam de fora, mas ao mesmo tempo dentro. Tinham de resignar-se à ordem de batalha de cada dia.
O pai escapava-se, pelo menos tentava, ausentando-se para dentro de si, sentado na cadeira, alheio aos ruídos, até mesmo às perguntas. Era o seu modo de resistir à teia tecida pela aranha infernal da rotina. Sentado na cadeira, olhando para longe, procurava manter um espaço inacessível à invasão dos deveres que roíam, como toupeiras, as próprias fundações da casa. Não era fácil. Quando menos se esperava, as criadas começavam de repente a levantar os tapetes, a virar as cadeiras de pernas para o ar, a arredar os móveis, a bater furiosamente nos tapetes pendurados no quintal. O pai levantava-se, às vezes resignado, às vezes revoltado. Então saía, batia com a porta, sumia-se. E só voltava uns dias depois.
Eu tinha medo daquelas operações de desarrumação e esfrega. Temia que o pai partisse e nunca mais voltasse. Mas ele acabava sempre por regressar. Durante uns dias, o frenesim afrouxava, havia uma espécie de trégua. Mas logo recomeçava. Eram assim os hábitos. As casas da vila estavam sujeitas a uma ordem preestabelecida. As pratas tinham de brilhar, e os cobres, e os talheres, os vidros das janelas, os cristais. E também o chão de madeira. Era mais importante do que o pendor dos homens para a divagação e o silêncio.
De certo modo não havia lugar para o pai nem para mim. Havia lugar para a nossa presença na ordem incessante dos ritos, a horas certas. Não para as cavalgadas solitárias que cada um tinha necessidade de fazer sem ser interrompido pela tarefa do dia. Mesmo que fosse o dia de receber visitas, com chá e bolos. Não tínhamos direito à nossa desordem interior, éramos prisioneiros de um espaço constantemente invadido por obrigações cujo sentido não podíamos entender. Não era por mal, era assim.
NOTA
¹tangidas – atingidas.
QUESTÃO 01
(IAVE 2019) Explicite dois aspetos que evidenciem o contraste entre o mundo das mulheres e o mundo dos homens, tal como nos é apresentado ao longo do texto.
QUESTÃO ANTERIOR:
- (IAVE 2019) Se algumas pessoas consideram que o acesso rápido e livre à informação é uma mais-valia na sociedade atual, outras defendem que esta facilidade pode ter um impacto negativo, tanto em termos pessoais como sociais.
SOLUÇÃO:
Ao longo do texto, são evidentes os contrastes entre o mundo das mulheres e o mundo dos homens no que respeita à vida doméstica.
Assim, por um lado, a mulher (concretamente a figura da mãe) ocupa o comando das “operações” e as suas atividades são caracterizadas pelas rotinas das várias lides domésticas, onde cada mulher se empenha fisicamente (e afincadamente); contrariamente, o homem ocupa um lugar marginal, refugiando-se na introspeção e na reflexão.
Por outro lado, a atividade feminina caracteriza-se pelo ruído e pela confusão (mesmo que temporária, fruto das arrumações), ao passo que a atividade masculina se pauta pelo silêncio (necessário à introspeção e à reflexão).
PRÓXIMA QUESTÃO:
- (IAVE 2019) No terceiro parágrafo, o narrador descreve comportamentos do pai que indiciam duas diferentes formas de reação à «ordem de batalha de cada dia» (linhas 9 e 10).
QUESTÃO DISPONÍVEL EM:
- Prova Exame Nacional de Portugal 2019 (1ª e 2ª Fase) com Soluções
Eram terríveis as rotinas, quase um rito iniciático, uma sagração. Havia o dia de esfregar a casa, o dia de lavar a roupa, o dia de arear os metais, o dia de tomar banho. E também o dia de pôr flores aos mortos. Havia ainda o dia do remédio para as bichas e o dia do pente fino, à cata dos piolhos apanhados na escola.
Nada mais contava senão o que estava determinado para ser o dia desse dia. As mulheres ficavam possessas de cada tarefa, como tangidas¹ por uma demoníaca alucinação. Era uma coisa obscura, essencial, que desordenava e reordenava a casa, as horas, os hábitos, os próprios humores. Ninguém podia quebrar aquele ritmo, que girava, obsessivo, à volta da mãe. Os homens estavam de fora, mas ao mesmo tempo dentro. Tinham de resignar-se à ordem de batalha de cada dia.
O pai escapava-se, pelo menos tentava, ausentando-se para dentro de si, sentado na cadeira, alheio aos ruídos, até mesmo às perguntas. Era o seu modo de resistir à teia tecida pela aranha infernal da rotina. Sentado na cadeira, olhando para longe, procurava manter um espaço inacessível à invasão dos deveres que roíam, como toupeiras, as próprias fundações da casa. Não era fácil. Quando menos se esperava, as criadas começavam de repente a levantar os tapetes, a virar as cadeiras de pernas para o ar, a arredar os móveis, a bater furiosamente nos tapetes pendurados no quintal. O pai levantava-se, às vezes resignado, às vezes revoltado. Então saía, batia com a porta, sumia-se. E só voltava uns dias depois.
Eu tinha medo daquelas operações de desarrumação e esfrega. Temia que o pai partisse e nunca mais voltasse. Mas ele acabava sempre por regressar. Durante uns dias, o frenesim afrouxava, havia uma espécie de trégua. Mas logo recomeçava. Eram assim os hábitos. As casas da vila estavam sujeitas a uma ordem preestabelecida. As pratas tinham de brilhar, e os cobres, e os talheres, os vidros das janelas, os cristais. E também o chão de madeira. Era mais importante do que o pendor dos homens para a divagação e o silêncio.
De certo modo não havia lugar para o pai nem para mim. Havia lugar para a nossa presença na ordem incessante dos ritos, a horas certas. Não para as cavalgadas solitárias que cada um tinha necessidade de fazer sem ser interrompido pela tarefa do dia. Mesmo que fosse o dia de receber visitas, com chá e bolos. Não tínhamos direito à nossa desordem interior, éramos prisioneiros de um espaço constantemente invadido por obrigações cujo sentido não podíamos entender. Não era por mal, era assim.
Manuel Alegre, «A grande subversão», O Homem do País Azul, 6.ª ed.,
Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2008, pp. 51-53.
NOTA
¹tangidas – atingidas.
QUESTÃO 01
(IAVE 2019) Explicite dois aspetos que evidenciem o contraste entre o mundo das mulheres e o mundo dos homens, tal como nos é apresentado ao longo do texto.
QUESTÃO ANTERIOR:
- (IAVE 2019) Se algumas pessoas consideram que o acesso rápido e livre à informação é uma mais-valia na sociedade atual, outras defendem que esta facilidade pode ter um impacto negativo, tanto em termos pessoais como sociais.
SOLUÇÃO:
Ao longo do texto, são evidentes os contrastes entre o mundo das mulheres e o mundo dos homens no que respeita à vida doméstica.
Assim, por um lado, a mulher (concretamente a figura da mãe) ocupa o comando das “operações” e as suas atividades são caracterizadas pelas rotinas das várias lides domésticas, onde cada mulher se empenha fisicamente (e afincadamente); contrariamente, o homem ocupa um lugar marginal, refugiando-se na introspeção e na reflexão.
Por outro lado, a atividade feminina caracteriza-se pelo ruído e pela confusão (mesmo que temporária, fruto das arrumações), ao passo que a atividade masculina se pauta pelo silêncio (necessário à introspeção e à reflexão).
PRÓXIMA QUESTÃO:
- (IAVE 2019) No terceiro parágrafo, o narrador descreve comportamentos do pai que indiciam duas diferentes formas de reação à «ordem de batalha de cada dia» (linhas 9 e 10).
QUESTÃO DISPONÍVEL EM:
- Prova Exame Nacional de Portugal 2019 (1ª e 2ª Fase) com Soluções
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