As questões de ( 01 ) a ( 10 ) referem-se ao texto a seguir. Texto 1 Um escritor! Um escritor! Antônio Prata* Com o jornal numa mão e um gua...
As questões de (01) a (10) referem-se ao texto a seguir.
Com o jornal numa mão e um guaraná diet na outra, eu caminhava pelas ruas de Kiev, desviando de barricadas e coquetéis molotov(1), quando a voz no sistema de som me trouxe de volta à poltrona 11C do Boeing 737: “Atenção, senhores passageiros, caso haja um médico a bordo, favor se apresentar a um de nossos comissários”.
Foi aquele discreto alvoroço: todos cochichando, olhando em volta, procurando o doente e torcendo por um doutor, até que, do fundo da aeronave, despontou o nosso herói. Vinha com passos firmes — grisalho, como convém —, a vaidade disfarçada num leve enfado, como um Clark Kent que, naquele momento, estivesse menos interessado em demonstrar os superpoderes do que em comer seus amendoins.
Um comissário o encontrou no meio do corredor e o levou, apressado, até uma senhora gorducha que segurava a cabeça e hiperventilava na primeira fileira do avião. O médico se agachou, tomou o pulso, auscultou peito e costas, conversou baixinho com ela, depois falou com a aeromoça. Trouxeram uma caixa de metal, ele deu um comprimido à mulher e, nem dez minutos mais tarde, voltou pros seus amendoins, sob os olhares admirados de todos.
Ou de quase todos, pois a minha admiração, devo admitir, foi rapidamente fagocitada(2) pela inveja. Ora, quando a medicina nasceu, com Hipócrates, a história de Gilgamesh(3) já circulava pelo mundo havia mais de dois milênios: desde tempos imemoriais, enquanto o corpo seguia ao deus-dará, a alma era tratada por mitos, versos, fábulas — e, no entanto...
No entanto, caros leitores, quem aí já ouviu uma aeromoça pedir, ansiosa: “Atenção, senhores passageiros, caso haja um escritor a bordo, favor se apresentar a um de nossos comissários”?
Eu não me abalaria. Fecharia o jornal, sem afobação, poria uma Bic e um guardanapo no bolso, iria até a senhora gorducha e me agacharia ao seu lado. Conversaríamos baixinho. Ela me confessaria, quem sabe, estar prestes a reencontrar o filho, depois de dez anos brigados: queria falar alguma coisa bonita pra ele, mas não era boa com as palavras. Eu faria uma rápida anamnese(4): perguntaria os motivos da briga, se o filho estava mais pra Proust ou pra UFC(5), levantaria recordações prazerosas da relação e, antes de tocarmos o solo, entregaria à mulher três parágrafos capazes de verter lágrimas até da estátua do Borba Gato.
De volta ao meu lugar, passageiros me cumprimentariam e compartilhariam histórias semelhantes. Uma jovem mãe me contaria do primo poeta que, num restaurante, ao ouvir os apelos do garçom —”Um escritor, pelo amor de Deus, um escritor!”—, tinha sido levado até um rapaz apaixonado e conseguido escrever seu pedido de casamento no cartão de um buquê antes que a futura noiva voltasse do banheiro.
Um senhor comentaria o caso muito conhecido do romancista que, após as súplicas de mil turistas, fora capaz de convencer 200 tripulantes de um cruzeiro a abandonar o gerúndio.
Eu sorriria, de leve. Diria “Pois é, se você escolheu essa profissão, tem que estar preparado pras emergências”, então recusaria, educadamente, o segundo saquinho de amendoins que a aeromoça me ofereceria e voltaria, como se nada tivesse acontecido, para as bombas da Crimeia(6), com meu copo de guaraná.
Vocabulário de apoio:
1 - Kiev: capital e maior cidade da Ucrânia. No trecho: “eu caminhava pelas ruas de Kiev, desviando de barricadas e coquetéis molotov”, o autor se refere ao tema do livro (Guerra da Crimeia) que ele lia, enquanto estava no voo. Os termos ‘barricadas’(trincheiras feitas de improviso) e ‘coquetéis molotov’ (tipo de arma química, geralmente usada em guerrilhas) estão relacionados ao tema da leitura feita pelo autor.
2 - fagocitada: neologismo criado a partir de fagocitose: processo de ingestão e destruição de partículas sólidas, como bactérias ou pedaços de tecido necrosado, por células ameboides chamadas de fagócitos [tem como uma das funções a proteção do organismo contra infecções.]; no texto, ‘fagocitada’ pode ser substituída por ‘devorada’.
3 - No trecho: “a medicina nasceu, com Hipócrates, a história de Gilgamesh”, o autor se refere a Hipócrates – pensador grego, considerado o “pai da Medicina” – e a Gilgamesh - rei da Suméria, mais conhecido atualmente por ser o personagem principal da Epopeia de Gilgamesh, um épico mesopotâmico preservado em tabuletas escritas com caracteres cuneiformes (o mais antigo tipo de escrita do mundo).
4 - anamnese: lembrança, recordação pouco precisa. No campo da medicina, anamnese é um histórico que vai desde os sintomas iniciais até o momento da observação clínica, realizado com base nas lembranças do paciente.
5 - No trecho: “se o filho estava mais pra Proust ou pra UFC”, o autor se refere a um escritor francês (Proust, importante escritor no cenário da literatura mundial) e a UFC, cuja sigla em inglês Ultimate Fighting Championship, designa organização de MMA (Artes Marciais Mistas) que produz eventos ao redor de todo o mundo.
6 - bombas da Crimeia – referência à Guerra da Crimeia (1853-1856), assunto do livro que o autor lia, durante o voo.
QUESTÃO 04
(CEFET-MG) No texto, há o uso de diferentes conjunções (elementos coesivos) com a finalidade de demarcar conexões de sentido. A partir dessa afirmação, existe correlação entre a conjunção em destaque e a informação de sentido entre colchetes em
A) Ou de quase todos, pois a minha admiração, devo admitir, foi rapidamente fagocitada pela inveja. [explicação]
B) “Atenção, senhores passageiros, caso haja um escritor a bordo, favor se apresentar a um de nossos comissários”? [causa]
C) Trouxeram uma caixa de metal, ele deu um comprimido à mulher e, nem dez minutos mais tarde, voltou pros seus amendoins, sob os olhares admirados de todos. [tempo]
D) Ela me confessaria, quem sabe, estar prestes a reencontrar o filho, depois de dez anos brigados: queria falar alguma coisa bonita pra ele, mas não era boa com as palavras. [adição]
Texto 1
Um escritor! Um escritor!
Antônio Prata*
Com o jornal numa mão e um guaraná diet na outra, eu caminhava pelas ruas de Kiev, desviando de barricadas e coquetéis molotov(1), quando a voz no sistema de som me trouxe de volta à poltrona 11C do Boeing 737: “Atenção, senhores passageiros, caso haja um médico a bordo, favor se apresentar a um de nossos comissários”.
Foi aquele discreto alvoroço: todos cochichando, olhando em volta, procurando o doente e torcendo por um doutor, até que, do fundo da aeronave, despontou o nosso herói. Vinha com passos firmes — grisalho, como convém —, a vaidade disfarçada num leve enfado, como um Clark Kent que, naquele momento, estivesse menos interessado em demonstrar os superpoderes do que em comer seus amendoins.
Um comissário o encontrou no meio do corredor e o levou, apressado, até uma senhora gorducha que segurava a cabeça e hiperventilava na primeira fileira do avião. O médico se agachou, tomou o pulso, auscultou peito e costas, conversou baixinho com ela, depois falou com a aeromoça. Trouxeram uma caixa de metal, ele deu um comprimido à mulher e, nem dez minutos mais tarde, voltou pros seus amendoins, sob os olhares admirados de todos.
Ou de quase todos, pois a minha admiração, devo admitir, foi rapidamente fagocitada(2) pela inveja. Ora, quando a medicina nasceu, com Hipócrates, a história de Gilgamesh(3) já circulava pelo mundo havia mais de dois milênios: desde tempos imemoriais, enquanto o corpo seguia ao deus-dará, a alma era tratada por mitos, versos, fábulas — e, no entanto...
No entanto, caros leitores, quem aí já ouviu uma aeromoça pedir, ansiosa: “Atenção, senhores passageiros, caso haja um escritor a bordo, favor se apresentar a um de nossos comissários”?
Eu não me abalaria. Fecharia o jornal, sem afobação, poria uma Bic e um guardanapo no bolso, iria até a senhora gorducha e me agacharia ao seu lado. Conversaríamos baixinho. Ela me confessaria, quem sabe, estar prestes a reencontrar o filho, depois de dez anos brigados: queria falar alguma coisa bonita pra ele, mas não era boa com as palavras. Eu faria uma rápida anamnese(4): perguntaria os motivos da briga, se o filho estava mais pra Proust ou pra UFC(5), levantaria recordações prazerosas da relação e, antes de tocarmos o solo, entregaria à mulher três parágrafos capazes de verter lágrimas até da estátua do Borba Gato.
De volta ao meu lugar, passageiros me cumprimentariam e compartilhariam histórias semelhantes. Uma jovem mãe me contaria do primo poeta que, num restaurante, ao ouvir os apelos do garçom —”Um escritor, pelo amor de Deus, um escritor!”—, tinha sido levado até um rapaz apaixonado e conseguido escrever seu pedido de casamento no cartão de um buquê antes que a futura noiva voltasse do banheiro.
Um senhor comentaria o caso muito conhecido do romancista que, após as súplicas de mil turistas, fora capaz de convencer 200 tripulantes de um cruzeiro a abandonar o gerúndio.
Eu sorriria, de leve. Diria “Pois é, se você escolheu essa profissão, tem que estar preparado pras emergências”, então recusaria, educadamente, o segundo saquinho de amendoins que a aeromoça me ofereceria e voltaria, como se nada tivesse acontecido, para as bombas da Crimeia(6), com meu copo de guaraná.
*Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de Nu, de Botas.
Jornal Folha de São Paulo, 25 mai. 2014
Disponível em: <www1.folha.uol.com>.
Acesso em 27 ago.2019.
Vocabulário de apoio:
1 - Kiev: capital e maior cidade da Ucrânia. No trecho: “eu caminhava pelas ruas de Kiev, desviando de barricadas e coquetéis molotov”, o autor se refere ao tema do livro (Guerra da Crimeia) que ele lia, enquanto estava no voo. Os termos ‘barricadas’(trincheiras feitas de improviso) e ‘coquetéis molotov’ (tipo de arma química, geralmente usada em guerrilhas) estão relacionados ao tema da leitura feita pelo autor.
2 - fagocitada: neologismo criado a partir de fagocitose: processo de ingestão e destruição de partículas sólidas, como bactérias ou pedaços de tecido necrosado, por células ameboides chamadas de fagócitos [tem como uma das funções a proteção do organismo contra infecções.]; no texto, ‘fagocitada’ pode ser substituída por ‘devorada’.
3 - No trecho: “a medicina nasceu, com Hipócrates, a história de Gilgamesh”, o autor se refere a Hipócrates – pensador grego, considerado o “pai da Medicina” – e a Gilgamesh - rei da Suméria, mais conhecido atualmente por ser o personagem principal da Epopeia de Gilgamesh, um épico mesopotâmico preservado em tabuletas escritas com caracteres cuneiformes (o mais antigo tipo de escrita do mundo).
4 - anamnese: lembrança, recordação pouco precisa. No campo da medicina, anamnese é um histórico que vai desde os sintomas iniciais até o momento da observação clínica, realizado com base nas lembranças do paciente.
5 - No trecho: “se o filho estava mais pra Proust ou pra UFC”, o autor se refere a um escritor francês (Proust, importante escritor no cenário da literatura mundial) e a UFC, cuja sigla em inglês Ultimate Fighting Championship, designa organização de MMA (Artes Marciais Mistas) que produz eventos ao redor de todo o mundo.
6 - bombas da Crimeia – referência à Guerra da Crimeia (1853-1856), assunto do livro que o autor lia, durante o voo.
QUESTÃO 04
(CEFET-MG) No texto, há o uso de diferentes conjunções (elementos coesivos) com a finalidade de demarcar conexões de sentido. A partir dessa afirmação, existe correlação entre a conjunção em destaque e a informação de sentido entre colchetes em
A) Ou de quase todos, pois a minha admiração, devo admitir, foi rapidamente fagocitada pela inveja. [explicação]
B) “Atenção, senhores passageiros, caso haja um escritor a bordo, favor se apresentar a um de nossos comissários”? [causa]
C) Trouxeram uma caixa de metal, ele deu um comprimido à mulher e, nem dez minutos mais tarde, voltou pros seus amendoins, sob os olhares admirados de todos. [tempo]
D) Ela me confessaria, quem sabe, estar prestes a reencontrar o filho, depois de dez anos brigados: queria falar alguma coisa bonita pra ele, mas não era boa com as palavras. [adição]
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- A) Ou de quase todos, pois a minha admiração, devo admitir, foi rapidamente fagocitada pela inveja. [explicação]
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